6. Emancipação, maternidade, reprodução: a “Pílula” e o Aborto

História da “concessão paradoxal às mulheres do instrumento da sua emancipação”

O impacto extraordinário que viria a ter, quase de imediato, a legalização da contracepção oral (primeiro, comparticipada pela Segurança Social e em seguida, gratuita),não foi, segundo Françoise Héritieri, nem previsto, nem desejado, pelos responsáveis da decisão política.

Escreve Françoise Héritier: “Este instrumento de emancipação foi concedido às mulheres praticamente por engano. Os governos da época eram sem dúvida movidos por intenções muito generosas, mas não se aperceberam das consequências que tal decisão poderia ter. (…) No espírito dos parlamentares, o acesso à contracepção era um meio de regulação dos nascimentos que ia ser confiado à mulheres, nunca uma alavanca para acederem à autonomia e à liberdade”ii. [Traduzo; negritos e itálicos meus].

O processo de decisão, acessível e documentado, merece atenção. É um debate entre homens (98% dos deputados e senadores). As preocupações que revelam incidem nos eventuais efeitos sobre a natalidade: não são apenas homens, são “Homens de Estado” e o aspecto liberatório da lei não é o que os motiva. De facto, depois de a lei ter sido votada na “Assemblée Nationale” pelos Deputados em 1967iiie ter sofrido várias alterações tendendo sempre para a maior liberalização e para a extensão da sua aplicação (em particular para os chamados “Departamentos Ultramarinos” da Guadalupe e da Martinica), os Senadores foram chamados a pronunciar-se sobre ela. No Relatório da “Commission des Affaires sociales” (1974) os Senadores mostram-se preocupados com os efeitos da autorização da contracepção “após cinquenta e sete anos de proibição” e criminalização (1920)iv. Escrevem os Senadores: “Será oportuno acelerar a difusão dos métodos contraceptivos numa altura em que a taxa de natalidade está a cair? (…) Não se pode negar que a contracepção desempenha um certo papel na na queda da taxa de natalidade”. O que os preocupa é, aparentemente, apenas a demografia. Os Senadores, como aliás tinha acontecido com os Deputados, só vêm na contracepção o “meio de regular os nascimentos” e o seu eventual e aliás já verosímil, impacto demográfico: a escala social global.v Mas no ano seguinte (“Lei Veil”, 1975), o aborto será despenalizado.

A quebra da fecundidade na viragem dos anos 60-70 é evidente. H. Le Bras 2011 vi

Ora a expressão “regular os nascimentos” encerra uma armadilha: para os parlamentares ela deveria significar a possibilidade dada às famílias de decidirem quando querem ter um filho: questão de calendário. Mas certas feministas logo acrescentam ao quando, a cláusula seguinte: “ter um filho quando eu quiser, se eu quiser“, o que comporta a eventualidade de não ter filhos. Os legisladores indicam en passant que as novas normas são inevitáveis, porque assim o “exige a grande maioria da opinião pública”. O que parecia aos olhos dos protagonistas uma decisão que iria apenas no sentido de um melhor “agendamento” dos nascimentos (um “planning familial”, como ficaria conhecido), com algum risco demográfico, era o desencadear de uma verdadeira revolução. No momento em que F. Héritier (FH) escreve (34 anos depois das duas leis), já as filhas da coorte de mulheres que tinham cerca de vinte anos em 1967 utilizavam a contracepção: tinham passado duas gerações, autorizando o consequente recuo. De onde provém esse “engano”? É provável, se prolongarmos o raciocínio de FH, que ele resulte da dificuldade propriamente masculina em pensar as relações de parentesco de outro modo que não a fixidez. E “ter mais filhos ou menos” como uma variável neutra. Masculina, na ocorrência era de facto essa dificuldade: no Parlamento que votou a “Lei Newvirth” em 1967 as mulheres eram 1,9% dos deputadosvii; em 1968, as mulheres representavam 1,8% dos senadores. Essas Assembleias quase exclusivamente masculinas, dominadas pelos partidos conservadores que nunca veriam na contracepção, “uma alavanca para [as mulheres] acederem à autonomia e à liberdade” (FH) e mesmo assim (ou por isso mesmo) pensaram e votaram as leis. Como entender o que FH vê como “paradoxo” e corresponde ao que R. Boudon designava como “effets pervers” e M. Cherkaoui analisou como “O paradoxo das consequências. ” (Ver nota VIII).

A resposta encontra-se na segunda ordem de razões que os Senadores evocam no seu Relatório de 1974: pôr cobro à tragédia humana do aborto clandestino. Se bem que a fiabilidade dos números seja difícil de avaliar, Simone Veil, defensora da lei, estima em 1974 que em França 300.000 mulheres por ano recorriam ao aborto – clandestino – porque ilegal. Mais grave ainda, entre 300 e 400 mulheres morriam cada ano das consequências desses abortos, muitas vezes praticados em condições terríveis. Outras sofriam consequências graves. É neste contexto, pontuado com episódios de verdadeira revolta das mulheres contra a situação que lhes era imposta (manifestos de mulheres “notáveis” com alto capital social e político e de médicos, “confessando” umas e outros, terem praticado o aborto, etc.) que os parlamentares avaliam a sua acção.

“Poucas mulheres usam contracepção. Demasiadas fazem abortos. Raramente são as mesmas. Para que as mulheres passem da segunda categoria para a primeira, precisamos de de tornar mais fácil a utilização de contraceptivos. É precisamente este o objetivo que este projecto de lei visa alcançar. (…) É uma necessidade urgente sensibilizar as mulheres francesas para os aspectos positivos da contracepção em comparação com o aborto.” viii

Estaríamos ainda a meio do caminho se não indagássemos o que levou a questão da contracepção e do aborto a explodir naquele momento histórico. FH e muitos outros atribuem com alguma razão, um certo efeito de “libertação sexual” à legalização da contracepção (e consequente diminuição do do que os senadores designam como o “flagelo do aborto”). Todavia, é claro que foi precisamente a libertação sexual que precedeu, motivou e decidiu o resultado do debate legislativo. O que o tinha tornado inadiável era precisamente a “revolução sexual” que vinha de longe, uma libertação que se traduzia – em negativo – no próprio aumento do número de abortos e havia de surgir à plena luz do dia em Maio de 1968. Este movimento não foi portanto o ponto de partida mas a expressão de massas de um movimento de fundo que vinha alterando a relação da sociedade francesa com a sexualidade e com a maternidade, como por seu turno as Assembleias (tão conservadoras!) haviam de ser obrigadas a registar.

     Cooperação entre os sexos. Objectivo: manter a corda esticada

O “paradoxo” fica assim meio elucidado. Falta considerar o sofrimento social que o aborto (sempre clandestino) provocava para além daquelas que o sofriam no seu corpo, as mulheres. Antes, a sexualidade era assombrada pelo medo da gravidez indesejada, e os homens – maridos, amantes, amigos, irmãos, pais – não eram indiferentes às graves consequências que as suas companheiras arriscavam: legais e sanitárias, porventura a morte. A “revolução sexual” só pôde eclodir plenamente quando o fantasma do aborto (clandestino, mortal) foi esconjurado; mas o assunto foi tratado “lateralmente”, tentando “desviar” as mulheres do aborto para a contracepção. Não foi apenas a revolução da sexualidade feminina (o que tomaria o aspecto “paradoxal” de uma sociedade de homens a darem autonomia às mulheres), mas também a revolução da sexualidade de mulheres e homens, de todas as idades e condições. Os parlamentares não terão “concedido por engano” às mulheres o controlo da sua reprodução. Na sua intenção eles visavam como vimos (e ainda mais no que vinha implícito) a libertação da sexualidade de todos e, sendo as Assembleias (dos deputados, dos Senadores) constituídas por 98% de homens, dos quais 70% eleitos pelos partidos conservadores, exprimiam um estado da sociedade mais do que um estado da “opinião”. Não terá portanto sido por engano (“par erreur” – FH) que o direito à contracepção foi “concedido” às mulheres (ver nota VIII). Como devia mostrar pouco mais tarde o destino bastante diferente das leis de despenalização do aborto, comparado com a legalização da contracepção. Esta foi votada por unanimidade, enquanto o aborto deu lugar a debates ásperos, de resultado incerto, entre uma forte minoria ultra-conservadora (das mesmas câmaras legislativas, com composições idênticas!) e uma curta maioria “liberal”. Esta triunfaria por pouco em 1975: eram duas questões diferentes, decerto, mas a barreira que as separava era puramente ideológica, reforçada nomeadamente pela Igreja Católicaix

Pergunta para o que vem a seguir: haverá sempre um(a) dominante e um(a) dominado(a)? Crédito Matte Mueller/ Getty

Mas os parlamentares tiveram, é certo, a vista curta. Porque o problema de fundo só surgiu depois de levantado o obstáculo à liberdade sexual a que todos e todas aspiravam – e esse problema era o controlo da maternidade e da procriação. Ora este era entregue às mulheres, a quem a lei Veil e seguintes atribuíram o privilégio exclusivo da decisão de engravidar ou não e de interromper ou de não interromper uma gravidez. E ninguém parecia saber quão grande era a diferença entre o número de gravidezes voluntárias e o número de gravidezes não intencionais: estas eram afinal muito mais numerosas do que se pensava. O impacto das medidas de controlo dos nascimentos iriam afectar fortemente a fecundidade (ver nota vi). Meio-século depois, as pessoas adultas sós e os casais sem filhos representam um pouco mais de metade dos “fogos” (“ménages”) na população adulta. Foi pela questão da procriação que começou a revolução antropológica, que F. Héritier vai analisar e nós com ela.

(continua)

Bilhetes Precedentes

*Primeiro bilhete: ver https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/08/31/uma-interpretacao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres-1/

** Segundo bilhete: https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/09/05/2-uma-visao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres/

*** Terceiro bilhete: https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/09/26/3-emancipacoes-femininas-vistas-de-cima-vistas-de-baixo/

**** Quarto bilhete: https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/10/02/4-emancipacao-feminina-entre-vitimismo-e-autonomia/

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***** Quinto Bilhete: https://umolharantropologico.wordpress.com/2024/02/09/5-emancipacao-sem-volta-a-tras-a-crise-global-e-as-mulheres-prospectivas-materialistas/

Notas

i Françoise Héritier, (1933-2017). Antropóloga, Africanista, foi aluna de Claude-LéviStrauss, sucedeu-lhe na direcção do Laboratoire d’Anthropologie Sociale da EHESS e depois na cátedra de Antropologia do Collège de France.

ii F. Héritier, Masculin / Féminin II. Dissoudre la hiérarchie. Paris, Odile Jacob, 2012 (2001), [147]

iii Loi n° 67-1176 du 28 décembre 1967 relative à la régulation des naissances”, dita “Lei Neuwirth”, adoptada por unanimidade.

iv “31 de julho de 1920: no contexto da política pró-natalista que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, a lei pune severamente o aborto (definido como crime) e proíbe a propaganda de métodos contraceptivos”. Em 1941 o regime fascista du marechal Pétain torna o aborto “crime contra o Estado”, punível com a pena de morte (Wikipedia). A URSS, tinha legalizado o aborto em 1920; Estaline proibiu-o em 1936. A relação directa entre aborto clandestino e mortalidade materna é evidenciada quando na URSS “Após a morte de Estaline, a lei de 23 de novembro de 1955 autorizou de novo o aborto, e levou a uma diminuição imediata na mortalidade materna, dividida por um factor de 2,5 entre 1955 e 1961″ (Wikipedia, citando a Revista Population, 1994.)

v Relatório: https://www.senat.fr/rap/1974-1975/i1974_1975_0062.pdf

vi Le Bras, Hervé. L’évolution de la fécondité en France de 1945 à 2010 : Méthode pour une controverse In : La mondialisation de la recherche : Compétition, coopérations, restructurations [en ligne]. Paris : Collège de France, 2011 (généré le 10 février 2024). Disponible sur Internet : <http://books.openedition.org/cdf/1544&gt;. ISBN : 978-2-7226-0140-6. DOI : https://doi.org/10.4000/books.cdf.1544. Ver também https://www.observationsociete.fr/structures-familiales/familles/evolution-de-la-fecondite/

vii 2022: as deputadas representam 37,3% do total.

viii Relatório do Senado, 1975. p11. Situação em Portugal no mesmo período: “Em 1980 cerca de 48% das mulheres portuguesas utilizavam um método contraceptivo moderno”. As primeiras reivindicações em relação ao aborto livre surgem após 1974 no sentido da sua despenalização, altura em que ocorreriam entre 100.000 e 200.000 abortos clandestinos por ano, dos quais 2% terminavam em morte (Tavares, 2008)”. O que representaria (impossível verificar) , entre 2.000 e 4.000 mortes de mulheres por ano, causadas pelo aborto clandestino. Ou seja esta causa de mortalidade com taxa 6 ou 7 vezes superior à da França. Mede-se assim a escala deste desastre humano. O voto da lei despenalizando a IVG (“Lei Veil” do nome da então ministra da saúde, Simone Veil), teve lugar em 29 de Novembro 1974 , com 284 votos a favor e 189 contra. Votaram a favor todos os deputados de esquerda, os do “centro” (direita “moderada”) e, apesar de tudo, uma parte dos deputados da direita dura (UDR) partido que apoiou o “regresso” de De Gaulle em Junho de 1968. Em Portugal, após uma primeira tentativa falhada em 1998, o aborto foi finalmente despenalizado por lei, após o referendo de 2007. É difícil dar conta da desproporção entre a intensidade das polémicas e movimentações a favor e contra a despenalização do aborto e a baixíssima participação na votação do referendo; 32% em 1998 (menos de 51% “não”) e 44% em 2007 (59% “sim”). Reprovado por cerca de 16%, dos eleitores inscritos em 1998, aprovado por 26,4% dos eleitores inscritos em 2007. O debate e as mobilizações, militâncias, etc., desenvoveram-se nos meios sociais minoritários, urbanos, educados, economicamente favorecidos. Em relação à massa do povo português, a “embraiagem” patinava. Documentação (que sobreavalia o impacto da militância) em: Monteiro, R. (2012), “A descriminalização do aborto em Portugal: Estado, movimentos de mulheres e partidos políticos”. Análise Social, 204, XLVII (3.º), pp. 586-605. Também:
Miguel Areosa Feio, “Lei do aborto em Portugal: barreiras atuais e desafios futuros”, Sociologia, Problemas e Práticas [Online], 97 | 2021, Online since 06 August 2021 . URL: https://journals.openedition.org/spp/9760

ix Sobre o “paradoxo” das consequências… : Mohammed Cherkaoui “Le paradoxe des conséquences. Essai sur une théorie wébérienne des effets inattendus et non voulus des actions”. Paris Droz, 2006. Cherkaoui trabalha a partir da obra de R. Boudon sobre mecanismos de acção e consequências imprevistas: Raymond Boudon, Effets pervers et ordre social. Paris: Presses Universitaires de France, 1977, 286 p.


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