4. Emancipação feminina: entre vitimismo e autonomia

  1. O obstáculo do vitimismo

(ii) A segunda lacuna que mencionei nas análises de VN, resulta de uma visão demasiado negativa, vitimista, da condição feminina nos períodos anteriores à revolução industrial, que apaga do horizonte histórico e ainda mais do ambiente ideológico a existência de profundas diferenças na condição feminina ao longo do tempo e a importância da cultura feminina que, quando ignorada, encara a mulher como mero objecto da História. Tudo se passa, com certas correntes feministas, como se o “longo século XIX” (1789-1914) fornecesse o esquema de referência quanto à condição feminina na Europa, desde sempre e prolongada no presente. Fazer do “horrível” século XIX a referência, para o passado e para o presente, apaga as diferenças das sociedades do passado, e ignora de modo dramático a revolução que ocorreu desde a segunda guerra mundial. Ficamos sem entender o lugar de um presente na sequência do tempo longo ao qual temos que nos referir.

Mas antes de evocarmos as componentes e a importância da cultura especificamente feminina, é preciso sintetizar a transformação da condição feminina provocada pela revolução industrial, mostrando a que ponto foi uma ruptura com os períodos precedentes.

Só uma perspectiva de longo prazo dá acesso às mudanças substanciais que afectaram a condição feminina, entre os períodos pré-industriais (inclusive longínquos), o período da primeira revolução industrial (1770-1830 e talvez até 1850 na Inglaterra), o período do auge da sociedade industrial, que abrange a segunda metade do século XIX e vai até à Grande Guerra (14-18) e provavelmente até 1945. Não me inquietam muito as incertezas da periodização em termos de datas de início e de fim de cada época; que quem ler estas linhas verifique se o “deslizar” das datas (por exemplo: 1830? 1850? ; 1914? 1945?), lhe sugere melhores termini a quo e termini ad quem.

2. Estruturas familiares não patriarcais?

Existe, desde os anos 1960 pelo menos, um abundante corpo de estudos sobre as estruturas familiares em numerosas sociedades (em termos de relações de parentesco, de autoridade, de economia dos agregados familiares, de transmissão dos bens) e no meio, no centro de tudo isso, de relações entre os sexos. Para o propósito limitado deste trabalho, interessa reter dessa massa de conhecimento que

(a) A condição feminina seguia parâmetros contrastantes entre a Europa Central e Oriental, por um lado e a Europa Ocidental, por outro. Que nesta última, a par com “bolsas” localizadas de estruturas familiares autoritárias e inegualitárias (entre homens e mulheres), existe uma variedade de formas igualitárias e até, (para grande “surpresa” dos investigadores – e investigadoras, aqui vale a pena especificar o sexo), uma dominante de agregados nucleares igualitários.1

(b) Que este tipo de agregados deixa de ser visto como o ponto de chegada “modernista” e até post-industrial (Parsons), para ser identificado com uma forma muito antiga (para alguns: desde o mundo “bárbaro” – séculos IV e seguintes; para outros, desde os caçadores-recolectores do Paleolítico superior), cuja sobrevivência seria característica do ocidente europeu. Não nos percamos: onde é que tudo isto nos leva?

(c) À premissa que a condição feminina fortemente degradada, característica da primeira revolução industrial não é o paradigma de referência no Ocidente europeu, antes um verdadeiro desastre social e até humanitário situado no tempo, provocado pela subversão dos equilíbrios entre as funções sociais dos dois sexos anteriormente regulados pela complementaridade dos papeis e por um certo equilíbrio de poderes. Não se trata de idealizar a situação social (e em particular feminina), nos períodos anteriores (no longo prazo e períodos diversos como já vimos), mas apenas de sublinhar que a destruição das estruturas familiares e da organização económica dos agregados familiares pela revolução industrial penalizou em primeiro lugar e de maneira muito mais feroz, as mulheres.

3. O inferno da primeira revolução industrial: as grandes perdedoras foram...

A “sobrecarga” é característica da proletarização das mulheres (inserção no mercado do trabalho assalariado industrial), que passam a assumir os tempos de trabalho no exterior (até16 horas antes de serem limitados a… 12) cumulativamente com os encargos familiares. A organização do primeiro escapa completamente à assalariada (ao assalariado também), que vai ser submetida a essa figura moderna da dupla jornada de trabalho. No regime anterior o agregado doméstico quase autárcico, de pequenas unidades camponesas com produções domésticas manufactureiras, homens e mulheres regulavam o seu dia de trabalho de modo autónomo. A produção de lanifícios (os homens – cardagem da lã e tecelagem, trabalhos agrícolas, as mulheres, fiação e lavagem e por vezes tintura das lãs), integrada nas tarefas domésticas de sobrevivência (alimentação, cuidados de saúde, criação dos filhos), permitia aos diversos participantes um certo grau de autonomia. E no caso das mulheres, uma condição social relativamente igualitária no seio da pequena unidade de produção familiar, apesar da situação de dominância masculina. A transferência da indústria têxtil do domicílio para as grandes fábricas – e as cidades, destrói essa autonomia e esse relativo equilíbrio. “Os anos que vão de 1830 até ao fim do Segundo Império [1870] foram os mais negros da história do trabalho das mulheres que, com a revolução industrial entraram em massa no mundo do trabalho fabril.”1

Pobreza – Mulheres – Londres – séc. XIX

“Em particular, verifica-se que as mulheres, casadas ou solteiras, são as grandes perdedoras da urbanização da indústria têxtil; juntamente com as crianças, são elas que os fabricantes preferem contratar, o que conduz a um declínio das noções de salário complementar e de trabalho em casa, bem como a uma ruptura entre as actividades domésticas e a vida profissional1.. A noção que elas devem ser menos bem remuneradas que os homens2, que não tinha qualquer pertinência na produção artesanal doméstica, torna-se uma ferramenta de sobre-exploração das mulheres.

Sendo o salário do homem insuficiente para a sobrevivência do agregado familiar, elas não têm alternativa senão submeter-se ao regime industrial para contribuírem para a sobrevivência da família.

Até aqui, o pano de fundo, historicamente situado, do qual emergem no Ocidente as reivindicações de emancipação das mulheres. Resumindo: a primeira revolução industrial destruiu as formas de organização familiar nas quais imperavam a combinação entre actividade agrícola (pequenas explorações, hortas, minifúndios, frequentemente sem títulos formais, o que favoreceu a sua expulsão) e actividade artesanal (na Grã-Bretanha, como vimos, sobretudo na produção de lanifícios). Nesta, homens e mulheres repartiam-se os papeis em função de critérios técnicos e de exigência de força física. Apesar de viverem num regime desigual, a posição social das mulheres era muito melhor do que a que o capitalismo industrial havia de lhes impor. O reconhecimento dessa diferença (dessa degradação) é essencial para compreender a emergência dos movimentos femininos no século XIX, e os seus sucessores no século XX.


Greve com ocupação : Fábrica de Dives. 11 semanas de greves femininas 1936. Solidariedade.

4. O “patriarcado”, de conceito analítico a arma ideológica

A força de evocação do desastre humano que representou, para homens, mulheres e crianças a fase “selvagem” da primeira revolução industrial, e as formas particularmente graves no que respeita às crianças e às mulheres, suscitou a tentação de projectá-lo para um passado muito anterior senão imemorial de dominação extrema, por um lado e de generalizá-lo, por outro lado para além dos espaços industriais dos países ocidentais, como se a totalidade do tecido social europeu tivesse sido submetida ao mesmo processo, ao mesmo ritmo e com a mesma excessiva gravidade. O que se perde com essa extensão abusiva é a possibilidade de compreensão das diferenças entre sistemas sociais e estruturas familiares, mesmo que estas assentem quase sempre numa ou outra forma de dominação masculina. Muitas delas incluiam formas de autonomia feminina que servirão de capital cultural para a resistência futura.

Martine Segalen assinala a “surpresa” para os investigadores que foi constatar “a prevalência da família nuclear numa época em que ela era pouco esperada”: em vez de ser uma forma “moderna”, recente, ela era já uma estrutura antiga. Segalen acrescenta: “A geografia da França parece caraterizar-se por três tipos de modelos familiares: um Sul e um Centro que associam a família-tronco a um sistema de devolução de bens que resulta num único herdeiro [autoritária e ela sim, de cariz “patriarcal”] , o Oeste e a Borgonha, que são zonas igualitárias associadas a uma família nuclear, enquanto certas bolsas [locais], como a Franche-Comté, associam um tipo de família comunitária (frérèche) a um sistema igualitário, na realidade fortemente favorável aos rapazes”. [170-171]. (Traduzo). A extrapolação ideológica da noção de “patriarcado” não resiste à investigação séria.

Ilustra bem a tendência para extrapolar do presente para o passado, deste para o presente e de uma sociedade concreta para toda a extensão das sociedades humanas, o uso anacrónico e descaracterizante do termo “patriarcado” que deixa de ser um conceito rigoroso que designa um certo tipo de estruturas familiares e de parentesco, para se tornar uma noção tão vasta como confusa, que pode ser aplicada a todas as formas, em todas as épocas históricas e a todas as culturas. E muda de estatuto e de função, porque deixa de ser uma ferramenta científica para ser usado como arma política. A antropóloga G. Rubin já tinha avisado: o uso extensivo e indiferenciado de “patriarcado”, perde qualquer utilidade analítica como acontece quando se “capitalismo” em toda a parte e em todo o tempo, porque se tudo é “capitalismo”, então nada o é no sentido histórica e teoricamente situado que o conceito rigoroso define1. Significativa da deriva que as ciências sociais têm vindo a sofrer sob o impulso das ideologias é a “justificação” que avança M. de Sève (professora de Ciência Política na universidade do Québec em Montréal – UQÁM). Contra a exigência de rigor de Gayle Rubin, escreve M. de Sève: “Consideramos que, ao fazê-lo, ela negligencia o poder evocativo de um termo politicamente carregado de significado em favor de uma designação porventura mais rigorosa, mas que tem o defeito [!] de ser semanticamente neutra.”2 (Itálicos meus). As “novas” cientistas feministas estão prontas a abandonar o rigor (solidamente fundamentado) do termo, defendido entre outros por G. Rubin, a favor da eficácia política no debate ideológico: o rigor tem um defeito: ser semanticamente neutro…

(E a seguir, se tudo correr bem… a “cultura feminina”, ou as mulheres enquanto produtoras e transmissoras de cultura ou ainda: teor e limites da dominação masculina.)

1 G. Rubin, « The Traffic in Women : Notes on the « Political Economy » of Sex », in R.R. Reiter, Toward an Anthropology of Women, New York et Londres, Monthly Review Press, 1975, p. 157-210. https://philpapers.org/archive/RUBtti.pdf

2Micheline de Sève, “Du socialisme patriarcal au féminisme socialiste.” in Lucille Beaudry, Christian Deblock et Jean-Jacques Gislain (Dirs), Un siècle de marxisme, pp. 175-193. http://classiques.uqac.ca/contemporains/seve_micheline_de/du_socialisme_patriarcal/du_socialisme_patriarcal_texte.html#_ftn20

3 Denizot Paul. “Révolution industrielle et condition féminine: avant, après….” In: XVII-XVIII. Bulletin de la société d’études anglo-américaines des XVIIe et XVIIIe siècles. N°35, 1992. pp. 113-121; (Traduzo; Itálicos meus) doi : https://doi.org/10.3406/xvii.1992.1913 https://www.persee.fr/doc/xvii_0291-3798_1992_num_35_1_1913

4 “em 1872, o salário médio das mulheres na indústria representava 43% do salário dos homens”. Agnès Thiercé, ibid.

5Agnès Thiercé. “La pauvreté laborieuse au XIXème siècle vue par Julie-Victoire Daubié” , Travail, genre et sociétés 1999/1 (N° 1), pp. 119-128. (Traduzo).

6 Segalen, M. (1985). “Sous les feux croisés de l’histoire et de l’anthropologie : la famille en Europe”. Revue d’histoire de l’Amérique française, 39(2), 163–184. https://www.erudit.org/fr/revues/haf/1985-v39-n2-haf2339/304348ar.pdf

Bilhetes Precedentes

*Primeiro bilhete: ver https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/08/31/uma-interpretacao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres-1/

** Segundo bilhete: https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/09/05/2-uma-visao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres/

Terceiro bilhete:

3. Emancipações femininas: vistas de cima, vistas de baixo