3. Emancipações femininas: vistas de cima, vistas de baixo

A descrição da “condição feminina” e dos factores materiais que a delimitavam, que retomo nos seus traços gerais do discurso de Véra Nikolski (VN), enferma de uma dupla lacuna: (i) a não consideração das profundas diferenças de classe que fazem da noção de “condição feminina” genérica algo de abstracto e de injusto e (ii) o apagamento do contributo essencial das mulheres desde as sociedades pré-industriais e na fase da industrialização que precede a transformação tecnológica do ambiente doméstico, que uma visão excessivamente vitimista transmite.

(i) Vejamos a primeira. Decerto, um parâmetro comum a todos o estratos sociais existe: são mulheres que engravidam e dão à luz. Mas entre as mulheres da burguesia e as mulheres das classes populares (operariado, campesinato e meios rurais pobres), as condições materiais de todos os momentos do processo de reprodução biológica e da criação dos filhos, sem excepção, criam um fosso incomensurável entre as classes. De facto, o ónus biológico stricto sensu (gravidez e parto) é geral, mas os cuidados de que beneficiam umas e outras antes, durante a gravidez e após o parto são tão diferentes como o seriam dois povos. A fertilidade e o número de filhos é pois um ónus comum, não sendo nada claro que a mortalidade infantil fosse igualmente distribuída entre as classes nem por conseguinte as suas consequências. Quanto ao acesso ao aborto em condições menos dramáticas, ele estava ao alcance das mulheres das classes dominantes e/ou favorecidas, bem antes da sua despenalização. Mas onde VN descrevia (e retomei) as condições materiais da criação dos filhos que impunham uma carga de trabalho esmagadora para as mulheres, importa lembrar que essa descrição apenas é verdadeira para as classes populares. Assim que os meios económicos o permitiam, as mães burguesas (e não se pense apenas na grande burguesia) recorriam massivamente à ajuda das “criadas”, “sopeiras”, “amas”, etc. As tarefas mais pesadas do quotidiano das mães, limpeza das casas, lavagem das roupas, fabrico da alimentação e lavagem das loiças, cuidados de higiene dos bebés, e até por vezes o aleitamento, eram “delegados” no pessoal (feminino) subalterno, recrutado entre as classes populares.

[Aqui entre nós, que ninguém nos ouve: Que mulher tão bonita!]

Era este pessoal que preenchia os lugares do aspirador, da máquina de lavar a roupa, da máquina de lavar a loiça enquanto os não houve, que era o motor dos carrinhos de compras, o transportador das águas, etc.. A “libertação” das mulheres em relação ao constrangimento das tarefas quotidianas, a sua emancipação material estava realizada para as classes privilegiadas urbanas ou rurais, desde muito cedo1. Um fosso imenso separa-as, nesse domínio, das mulheres do povo. As diferenças eram ainda mais decisivas e, surpreendentemente, de sentido inverso, no domínio institucional, do estatuto jurídico da mulher, embora este visasse uma aplicação universal. Sabe-se que a promulgação do Código Civil napoleónico (França1804; Portugal 1808?) veio agravar a dependência das mulheres em relação aos pais e sobretudo aos maridos. A regressão no domínio dos direitos atingiu principalmente as mulheres “burguesas” (ou de famílias proprietárias rurais) a começar pelas questões patrimoniais e pela autonomia profissional.

De aplicação teoricamente universal, as novas disposições desse Código foram praticamente ignoradas nos meios populares, urbanos e rurais. Nestes, as relações entre homens e mulheres escaparam em grande medida à forma napoleónica. Para começar, o casamento (um contrato que fazia todo o sentido para a gestão dos dotes e dos patrimónios próprios e comuns, dos filhos e das heranças) não foi, durante muito tempo, a forma dominante de associação entre sexos nos meios populares onde pelo contrário as relações digamos, informais (“juntamentos”, concubinagem, etc.) chegaram a ser mais frequentes que os casamentos (ver entre nós Leston Bandeira*), sobretudo nos meios urbanos. Notável é também a diferença das maneiras como eram tratados os nascimentos fora do casamento (ou da ligação informal) e a infidelidade; aqueles chegaram a ser mais numerosos que os “legítimos” (antes de voltarem a sê-lo na actualidade!). Entre a catástrofe da ilegitimidade no nascimento burguês e a relativa tolerância popular, há toda a diferença de sistemas familiares profundamente diferentes, onde a justiça queria ver um só. O estatuto social das mães solteiras, por exemplo, era tratado com mansuetude nos meios populares (ex.: acolhimento da mãe solteira na família de origem e criação cooperativa do filho ou dos filhos), mas manchava de modo indelével a mulher dos meios burgueses ou aristocráticos.

Quanto aos conflitos conjugais, a justiça francesa teve mais de uma ocasião de ser surpreendida pela ignorância por parte dos homens dos direitos (privilégios) que o Código Civil lhes reconhecia: queixosos ou arguidos, homens e mulheres pensavam as situações e os conflitos em termos igualitários (Sohn 1981**). Por exemplo, os maridos e as esposas ignoravam que o código civil atribuía aos maridos a propriedade e a gestão de todos os rendimentos da família (incluindo portanto os da esposa), donde decorria a inanidade da acusação contra o marido por açambarcamento (“roubo”) dos recursos da esposa. Pelo que a questão da emancipação das mulheres em relação à sua condição coloca-se de modo simétrico e inverso entre classes populares e burguesia (“classes médias”, “altas”, etc.). Para as burguesas, a emancipação em relação às pesadas tarefas “femininas” estava resolvida pelo recurso à mão-de-obra serviçal, a mecanização dessas tarefas (e a água corrente, sanitários, etc.) apenas mudou a modalidade técnica dos trabalhos, com o aumento da produtividade do trabalho doméstico, que dispensava em larga medida as trabalhadoras subalternas, até então adstritas às tarefas domésticas. O contrário acontecia com os meios populares: só a mecanização (e a água corrente, etc., etc.), muito mais tardia, permitiu alguma “libertação” em relação ao peso dessas tarefas, quer elas tivessem ou não empregos assalariados.

Paris, 5 de Julho de 1914. Manifestação feminista. A partir de 28 de Julho, sucedem-se as declarações de guerra. As prioridades mudam.**

No plano institucional, no plano do estatuto jurídico, foi o inverso que se verificou. As mulheres burguesas tinham um enorme caminho a percorrer para a sua emancipação. Estatuto do casamento, da gestão dos patrimónios, o extenso poder paternal, repressão do adultério feminino, restrições do direito de trabalhar, viajar, etc. (só abolidas em França nos anos sessenta, em Portugal no fim dos setenta), aplicavam-se de modo prático, rigoroso, nesses meios e qualquer conflito era resolvido em tribunal em função do respectivo estatuto formal. Ou seja, na grande maioria dos casos, a favor do homem, como mandava a lei. E os meios populares partiam de pressupostos que decorriam do funcionamento efectivo das relações entre homens e mulheres, em grande medida igualitário, à revelia do que estipulava o Código e a Lei. Os trabalhadores modestos nunca precisaram de autorizar as suas esposas a requererem passaportes; nem elas nem eles “viajavam”. E mesmo quando a educação das raparigas começou a ser possível, o acesso das crianças das classes populares nomeadamente das meninas, permaneceu muito mais reduzido entre os meios pobres.

Deste esboço da diferença de condição social entre as mulheres de diferentes classes resulta que para as classes burguesas o terreno das lutas de emancipação era o domínio dos direitos formais enquanto para as classes populares as questões a resolver pertenciam ao domínio material. Os movimentos feministas que reivindicavam o direito de voto para as mulheres, que haviam de ter uma história longa e atribulada, desenvolviam-ne num contexto politico-ideológico marcado pelo sistema do voto censitário. Este sistema, embora obdecesse a critérios diversos segundo os países e as épocas, marcava claramente a procupação de reservar o voto para as classes “burguesas”. As primeiras, feministas das classes favorecidas, viriam a ser as fundadoras e dinamizadoras dos feminismos – contra os “seus” homens -, enquanto as segundas lutaram – juntamente com os seus homens – pela melhoria material das condições de vida – comuns. As tonalidades que viriam a assumir esses dois movimentos de emancipação feminina marcaram os primeiros feminismos e continuam a caracterizar dois tipos de movimentos actuais. Dirigidos contra o poder formal dos homens, os feminismos burgueses eram movimentos contra os homens, e estes homens eram os seus homens, de classe privilegiada como elas. Eram esses homens os detentores do poder formal (legislativo, estatutário): era absolutamente normal que esses feminismos (logo chamados com alguma justificação “feminismos burgueses”), assumissem a modalidade antagonista.

O facto que tenha sido uma luta interna às classes privilegiadas, não exclui obviamente o seu alcance universal, no que respeita ao estatuto jurídico e social das mulheres. Sublinho: enquanto as “burguesas” lutavam (sobretudo depois de 1848 e até 1914), contra os “seus homens”, porque eles eram os detentores do poder político, em movimentos que se tornaram claramente conservadores, as mulheres das classes populares lutavam solidariamente com os seus companheiros pela melhoria material da condição comum – não só a todas as mulheres, mas sim comum a todas as pessoas, mulheres e homens, das classes populares. O feminismo popular foi marcado por uma tonalidade social, mais que societal. O “inimigo” não eram os seus homens, era o patronato, e geralmente as classes dirigentes, que incluíam como incluem tanto homens como mulheres. A reivindicação de igualdade (“A trabalho igual, salário igual”) foi um dos combates comuns a homens e mulheres dos meios populares, que não passaram pelo filtro do feminismo, mas sim pelo sindicalismo e pelos movimentos políticos e ideológicos de esquerda, apesar das hesitações e das graves contradições que os marcaram. Nestes, a reivindicação feminista ganhou relevo com figuras como August Bebel et Paul Lafargue ou ainda Fourier que afirmava que “o grau de emancipação das mulheres era a medida natural do grau de emancipação humana2. É fácil constatar que a diferença entre os dois “estilos” de feminismos e as prioridades que cada um deles escolhe, permanece bem presente e porventura se agrava. Reconhece-o a filósofa Nancy Frazer (New School for Social Research, New York), que considera que se trata de “ir além das questões estritas de género e analisar as desigualdades sociais e políticas de que são vítimas as mulheres, ultrapassar o feminismo dito “liberal”, de cima, elitista e individualista.”3 Deste, irei analisar um exemplo actual que ilustra a distância social e cultural entre os movimentos feministas elitistas e a generalidade das mulheres.

Por ora, insisto: em situação de crise profunda, os feminismos “burgueses”, culturalistas, obcecados com questões ultra-minoritárias de “género” perderiam forçosamente pé.

1 Actualmente, as contradições práticas entre trabalho feminino e maternidade são resolvidas pelas mulheres que fazem carreira nos estratos superiores pelo mesmo sistema de delegação das tarefas decorrentes da maternidade em pessoal subalterno, maioritariamente feminino. É óbvio que o sistema de “sub-contratação” de pessoal para o cuidado da casa e dos filhos beneficia igualmente os homens desses meios sociais.

2 Entre outros: Jean Rabaut. Histoire des féminismes français Paris, Stock, 1978.

As instâncias “oficiais” do operariado (Internacional comunista, governos soviéticos, partidos comunistas ocidentais, sindicatos…) tomaram muitas vezes posições claramente anti-feministas, em nome da uniformidade da condição operária, entre mulheres e homens e contra a especificidade da condição feminina. Em 1930, o partido comunista francês votou contra o aborto, e a URSS condenou-o vigorosamente , em detrimento do exercício da vontade própria das mulheres.

3 https://www.radiofrance.fr/franceculture/podcasts/la-grande-table-idees/comment-en-finir-avec-le-feminisme-des-elites-8878046

*Bandeira, Mário Leston (1996), Demografia e Modernidade: Família e Transição Demográfica em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda.

** Sohn, Anne-Marie. Les rôles féminins dans la vie privée : approche méthodologique et bilan de recherches. In: Revue d’histoire moderne et contemporaine, tome 28 N°4, Octobre-décembre 1981. pp. 597-623; doi : https://doi.org/10.3406/rhmc.1981.1168

https://www.persee.fr/doc/rhmc_0048-8003_1981_num_28_4_1168

** Fonte: BNF, https://essentiels.bnf.fr/fr/image/980453b7-c5e9-40f3-bb0a-a1a5e3cebd3f-5-juillet-1914-manifestation-suffragettes-mme-severine-en-tete-cortege

*Primeiro bilhete: ver https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/08/31/uma-interpretacao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres-1/

** Segundo bilhete: https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/09/05/2-uma-visao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres/