2.- Uma visão “materialista” da emancipação das mulheres

A acompanhar a melhoria que acima evocámos, (ver nota*) com desfasamentos variáveis no tempo e no espaço, veio a das condições materiais gerais de existência (não específicas da condição feminina) que também já fomos evocando antes (fim das fomes recorrentes, progressos da medicina, melhoria das habitações – água corrente, esgotos e bem mais tarde, é certo, a electrificação). O acesso à rede eléctrica e a mecanização de muitas tarefas domésticas marcaram um salto tecnológico (e o consequente aumento da produtividade) que terá tido lugar na segunda metade do século XX. Acrescentado ao movimento que vinha de longe, foi ele que libertou em proporções decisivas o tempo de trabalho doméstico que pesava sobre as mulheres e tornou possível a aceleração do seu ingresso em massa no mercado do trabalho assalariado (com taxas de actividade que de 33% no início do século XX sobem para quase 80% no presente).

Trabalhadoras. Belfast, 1900. (Foto: Reprodução/UIG), “Belfast Live

Um primeiro efeito desse progresso material que tornava possível a emancipação das mulheres e de que ela em grande medida decorre foi, afirmei-o no bilhete precedente, no Ocidente, a diminuição drástica da mortalidade infantil. A partir do momento em que se tornou possível ter “apenas” dois ou três filhos e estar razoavelmente certos da sua sobrevivência, o custo biológico da reprodução suportado pelas mulheres foi dividido por três ou por quatro. Toda a família beneficiou desses progressos devidos, essencialmente, à industrialização, mas as mulheres foram as que mais directamente deles beneficiaram, porque foi o encargo global das tarefas reprodutivas e “domésticas” que as penalizavam que mais diminuiu. Enquanto os homens das classes populares plenamente inseridos no mundo áspero do trabalho arrancavam melhorias salariais e de condições de trabalho que iam de modo apenas mediato melhorar a condição das mulheres (ao melhorar os recursos da família), as mudanças que afectaram as condições de vida das mulheres (a começar, como já vimos pelas condições do trabalho doméstico, pelo decréscimo da mortalidade infantil (medicina, vacinações…) e a seguir pela diminuição da natalidade – do número de filhos por mulher – beneficiaram as mulheres de modo directo.

Uma família de estrutura patriarcal: três gerações coabitam sob a autoridade do mais velho que conserva o poder sobre filhos, mesmo depois de casados, e netos. Se se tratar de uma família de estrutura patrilocal, também as filhas casadas poderão “trazer” os seus maridos (genros) para a casa paterna.

Mas voltemos ao acompanhamento das teses de Véra Nikolski (VN) no decurso do tempo. Entre a diminuição da mortalidade infantil e a diminuição da natalidade, corre o tempo da adaptação das sociedades à nova realidade biológica e adaptação das mulheres ao seu novo estatuto reprodutivo. Só em contexto de restrição desejada do número de filhos é que os meios de contracepção eficazes se tornam oportunos antes de se tornarem no indispensável instrumento das estratégias reprodutivas. Para além das falhas dos antigos sistemas de evitamento das gravidezes, todos eles causas de angústia e de frustração, a contenção da fecundidade só veio a receber uma solução tecnicamente eficaz, socialmente aceite e adoptada pela esmagadora proporção das famílias com o aparecimento da pílula contraceptiva. Mas se o controlo da fecundidade afectou as famílias no seu conjunto, e portanto também os homens, um seu efeito aparentemente colateral mas na verdade de alcance transcendente foi o facto que a contracepção oral deu às mulheres e a elas apenas o poder de decisão sobre a sua vida reprodutiva. A despenalização do aborto veio completar essa mudança essencial: só a mulher pode decidir abortar (e não o seu companheiro, que não pode exigir o aborto) ou não abortar e assim impor a paternidade ao seu companheiro com ou sem o seu consentimento.

Note-se a completa assimetria do novo regime reprodutivo, que culminará, com certa lógica, na redução cada vez mais frequente do homem ao papel de genitor, simples dador de esperma, no seio do casal (mal menor), ou com recurso às tecnologias médicas, e mais ainda nos casos, cada vez mais numerosos em que a mulher engravida “a sós” (sem companheiro permanente ou temporário) com esperma de dador anónimo, escolhido por ela segundo critérios de claro eugenismo. (O estudo dos critérios de escolha do dador, em função de caracteres fenotípicos estereotipados – alto, louro de olhos azuis – detecta um racialismo que tem, até há pouco, passado desapercebido)**.

Foram os avanços da investigação química e farmacêutica e das tecnologias da sua aplicação que permitiram esse passo gigante na emancipação das mulheres. Escrevi: permitiram. Com efeito, se essas inovações decisivas surgiram e vingaram, foi porque a evolução da sociedade em geral e da economia em particular o exigiam. A limitação dos nascimentos tornava-se funcional numa organização do trabalho assalariado que tinha propiciado e até exigido o contributo do trabalho feminino na sua fase de expansão. O acesso das mulheres ao mercado do trabalho (numa perspectiva de longo prazo, terá sido o regresso), visto como uma “conquista” feminina, tem decerto esse aspecto de derrube de barreiras arcaicas e pode aparecer como uma “vitória” dos movimentos feministas, quando na realidade esse acesso era indispensável e foi essencial para a expansão económica e como tal respondia a uma procura social alargada, e não pode esconder o facto que de uma vida difícil no lar, a mulher passou para a condição – comum – de proletária submetida às condições drásticas do salariato, continuando a ter um papel importante na esfera doméstica – duplo trabalho. Que esse processo tenha coincidido com uma certa ideia de libertação dos papeis domésticos exclusivos, com o desejo de participação diversificada nas actividades sociais e públicas, e tenha portanto sido atraente para as próprias mulheres, não suscita dúvidas. Mas o motor dessas mudanças não foram as ideias, mas sim a transformação da organização das economias capitalistas no decorrer de um curto século, na transição demográfica que culmina no último meio-século e por fim, como vimos acima, na difusão das tecnologias eficazes de controlo da fecundidade (contracepção, aborto). Não se trata de negar o papel das ideias de “libertação das mulheres” e das lutas de promoção dessas ideias, mas apenas de reconhecer que as ideias foram importantes sobretudo no que respeita ao desbloqueamento de barreiras, elas próprias ideológicas, fossem elas religiosas ou não, cujo desfasamento em relação à nova situação social tornava possível e até relativamente pacífica a sua ultrapassagem. O surgimento e o sucesso dessas ideias foram … produtos típicos da transformação material da sociedade. O impacto do movimento “feminista” (ideológico, normativo) era comandado pela transformação de fundo da base material da sociedade e por conseguinte da condição feminina.

*Primeiro bilhete: ver https://umolharantropologico.wordpress.com/2023/08/31/uma-interpretacao-materialista-da-emancipacao-das-mulheres-1/

** https://www.ieb-eib.org/fr/dossier/debut-de-vie/eugenisme/l-eugenisme-au-temps-de-la-procreation-medicalisee-561.html

https://img1.wsimg.com/blobby/go/a8f0d443-cbbc-435a-bade-701beceaab7d/downloads/The%20Public%20Papers%20of%20Margaret%20Sanger_%20Web%20Edit.pdf?ver=1636319472382

Thibault Scohier, « Jürgen Habermas, L’avenir de la nature humaine. Vers un eugénisme libéral ? », Lectures [En ligne], Les comptes rendus, mis en ligne le 30 septembre 2015

https://journals.openedition.org/lectures/18976

Um supermercado eugenista https://www.europeanspermbank.com/fr-fr/sperme-de-donneur/informations-sur-le-profil-des-donneurs